by mends » 03 Nov 2007, 17:35
A Escatologia da Libertação e o teatro de padre Júlio – Um caso exemplar
Vamos exercitar um pouco a memória. À época, comentei o caso no site Primeira Leitura — cujo fechamento foi aplaudido com grande entusiasmo pela canalha. Adiantou? Digamos que eu tenha ficado ainda mais animado. Sigamos. A reportagem que reproduzo ao pé desta introdução foi publicada pela Folha em 31 de outubro de 2005, assinada por Laura Capriglione.
No sábado anterior, haviam se casado, na Catedral da Sé, Lianinha Moraes, filha de José Ermírio de Moraes, do grupo Votorantim, e Guilherme Bueno de Almeida Prado. Se os Ermírio quiserem se livrar da presença dos pobres brasileiros em eventos sociais, podem escolher casar-se em qualquer igreja do mundo — se fosse necessário, eles até compravam uma... Em vez disso, Antonio Ermírio, tio de Lianinha, por exemplo, dedica seus fins de semana a cuidar das contas do hospital Beneficência Portuguesa, notavelmente bem-administrado, que atende a uma penca de pacientes do SUS. Passou dos 70 e não tira férias há uns 40 anos. E isso é verdade — só uma semana ou outra de descanso. A família inteira pega no pesado. Os descolados acham isso uma coisa feia. Acham que é falta de imaginação. Os bolivarianos, vocês sabem, querem jornada de seis horas por dia.
A ação dos Ermírio deve ser considerada caridade vulgar pela esquerdopatia. Os pobres precisam é do arremedo de luta de classes narrado por Laura Capriglione e da militância ideológica, movida a teologia vagabunda, do notório padre Júlio Lancelotti. À época, dei uma esculhambada na vaidade perniciosa deste servo do senhor. Abaixo, vai um pouco do seu “amor cristão”. Para evidenciar as injustiças sociais, padre Júlio resolveu se juntar aos “pobres” da Sé para marcar presença contra o casamento dos ricos. Laura destaca: “com suas sandálias de couro”...
“Sandália de couro”, é? E o que mais? Só se fossem as sandálias de um pescador de heresias. Considerando o dinheiro que gastava comprando carro de luxo para o seu “correria”, poderia bem exibir sapatos de cromo alemão. Aliás, com os (admitidos) R$ 150 mil, presentearia todos os miseráveis da Sé com pisantes reluzentes. Mas ele concentrou todos os esforços para tocar o coração, não os pés, de um só: Anderson. O que a reportagem abaixo evidencia é que, mais do que a cerimônia de casamento, a outra, a dos “pobres”, é que já estava previamente agendada..
Por que afirmo isso? Laura não é repórter de “social” nem transita naquela zona de ambigüidade em que política e celebridade se misturam. Não descarto que tenha tido uma intuição genial: “Pô, vou lá, com fotógrafo e tudo, e flagro o convescote dazelite em contraste com a pobreza dozescluído. Em pleno sabadão!” Pode ser. A genialidade tem dessas coisas. Mas eu tendo a apostar que a página picaresca, em que os ricos são caracterizados como prepotentes frívolos, tinha um pauteiro de antemão e com hora marcada: padre Júlio Lancelotti.
Era o tempo em que ele ditava uma fatwa, e o coitado que fosse alvo de sua sentença tinha a reputação espicaçada por seus tentáculos no “jornalismo crítico”. Aliás, senti falta de um “legítimo Capriglione” fazendo troça dos apoiadores do padre Lancelotti. Pelo que vi na televisão, havia ali um farto material. Alguns deles lembravam seguidores de Antônio Conselheiro — apenas com um crânio um pouco mais sensível...
Leiam a reportagem. Assim se construíam a reputação e a militância deste santo homem. Reparem no fim da reportagem. É incrível que, depois de 20 anos atuando como o rei da Praça da Sé, padre Júlio não consiga impedir que seus “pequeninos” voltem à sua rotina de cola de sapateiro e cachaça.
Lastimo muito que a atuação do padre tenha dado margem às mais do que lógicas especulações sobre o seu relacionamento com rapazes. Independentemente de onde o padre põe o seu desejo — e mesmo que seja, do ponto de vista sexual, uma vestal —, é a sua atuação política e pastoral que denuncia a miséria a que chegaram certas correntes da Igreja Católica. Eis aí: um padre, segundo critérios que são de classe social, mobiliza os pobres para hostilizar outros católicos — porque são “ricos”.
E pensar que o núcleo central do cristianismo — e do catolicismo — é ser universal, acolhendo quem se converte (independentemente de sua posição social) e sendo tolerante com quem decide seguir outro caminho.
Essa gente, por vontade e escolha, é irredimível. Vamos ao texto.
*
Sob chuva fina e friozinho de 18,7C (meio deslocado para a estação), um milagre aconteceu no último sábado a partir das 19h35, naquilo que é o pátio dos milagres de São Paulo, a praça da Sé. Diante dos miseráveis freqüentadores do lugar, meninos dependentes de cola de sapateiro, moradores de rua enlouquecidos de álcool e pregadores de pelo menos cinco denominações evangélicas, materializou-se o casamento de conto de fadas da filha do empresário José Ermírio de Moraes, Lianinha Moraes, com o administrador de empresas Guilherme Bueno de Almeida Prado, assistido por 1.200 convidados.
Desde as 15h, a igreja da Sé fechou suas portas para todo e qualquer mortal que, sem convite ou autorização especial, quisesse entrar para rezar. A rua estreita (três metros de largura) que separa as escadarias da catedral do restante da praça transformou-se na linha divisória entre os dois mundos, o dos pobres de sempre e o dos alienígenas da hora. Guardando à distância estava um exército de 400 seguranças e manobristas.
Bem que um rapaz com uma camiseta em que se lia "100% Hip Hop" tentou esboçar um discurso-denúncia às 18h. Depois de levantar a camiseta, para mostrar a pele negra, e de perguntar: "Tem algum preto entre os convidados?", o rapaz foi cercado por três homens de terno preto, sorrisos grudados nos rostos (como mandam os manuais de abordagem) e um "pra que essa gritaria?" como cartão de visitas. Levaram-no pelo braço para fora da praça.
Nas ruas em torno da igreja, desfilavam Mercedes, BMWs, Jaguares. As máquinas paravam rapidamente para despejar suas cargas: mulheres em longos vaporosos, barras lambendo o chão da praça, e acompanhantes.
"Feli-ci-da-des"
Não houve hostilidades. Os ricos passavam e não olhavam os cerca de 200 pobres que olhavam para eles. Até que chegou a noiva, às 19h35, e um "Êêêêêê" elevou-se, no que pareceu ser uma vaia. Mas veio o coro, revelando a intenção: "Feli-ci-da-des, feli-ci-da-des, feli-ci-da-des".
Lianinha não resistiu. Risonha, virou 180 o rosto antes fixado no portal da igreja e acenou para o povo da praça. Em resposta, ouviu mais alto o grito: "Feli-ci-da-des, feli-ci-da-des".
Às 20h, o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral de Rua, chegou em sandálias de couro, calças jeans e camisa esporte de manga curta.
"Aí, padre, entra lá na igreja. Vai nos representar no casório", pediu Yossef Rodrigues, 49, torneiro mecânico desempregado. Trinta pessoas cercaram o sacerdote, pedindo a mesma coisa.
Lancelotti vasculhou os bolsos das calças, em busca de sua carteira de identificação de padre. "Esqueci em casa. Eles não me deixarão entrar." Explicação dada, ficou com o povo, do lado de fora, embaixo da chuvinha.
O pessoal em torno do padre era mais politizado. Disse o comerciante Antonio Carlos Gomes, 56: "É incrível como esses ricos tiram da gente o direito de entrar onde eles estão, mesmo que esse lugar seja onde sempre estivemos, e onde estaremos amanhã."
Na porta principal da igreja da Sé, há estátuas em tamanho natural representando os quatro profetas maiores (Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel) e os quatro evangelistas (Marcos, Mateus, Lucas e João). É de Lucas a frase: "Felizes os pobres, porque deles é o Reino dos Céus". E o lado de lá da praça também.
Padre Júlio lembrou-se de São Bento José Labre, o "Mendigo de Deus", que viveu 14 anos como morador de rua, em Roma, no século 18. "O que será que ele está pensando ao ver o povo expulso da casa de Deus?"
Finda a cerimônia, a noiva sai da igreja, a cauda do vestido tomando toda a extensão da escadaria. De novo, o coro "feli-ci-da-des", e o sorriso da princesa.
Showroom de importados
Atrás, vai uma passeata de longos e casacas em busca de seus carros, excepcionalmente estacionados em plena praça, como em um showroom de importados.
Dentro da igreja, o dono da Carlos Flores começa a desmontar os arranjos decorativos, enquanto os 40 músicos embalam seus instrumentos e as 50 vozes guardam suas partituras.
Foram 20 mil rosas, 20 mil lírios, 40 mil lisiantos, 3.500 maços de gypsophila, que perfumaram a nave enquanto criavam um efeito de renda branca nas grandes colunas de sustentação da igreja.
Às 23h, a praça é, de novo, só do povo. Os meninos já puxam seus saquinhos de cola, as garrafas pet com aguardente já passam de mão em mão. Um pastor evangélico chega com sua Bíblia para conversar com os homens.
Por Reinaldo Azevedo
"I used to be on an endless run.
Believe in miracles 'cause I'm one.
I have been blessed with the power to survive.
After all these years I'm still alive."
Joey Ramone, em uma das minhas músicas favoritas ("I Believe in Miracles")