by mends » 27 Jul 2007, 12:09
Um problema para a classe média
| 26.07.2007
Em troca de todos os impostos que pagam, os brasileiros recebem o deboche de ministros e uma quase hostilidade do governo -- que mal disfarça a alegria ao constatar que "só 8% da população viaja de avião"
Por J.R. Guzzo
EXAME
Algumas semanas atrás, a ministra do Turismo, Marta Suplicy, fez, por sua livre e espontânea vontade, a seguinte sugestão aos passageiros atormentados pela calamidade nos aeroportos: "Relaxem e gozem". Marta não foi demitida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva nem ouviu qualquer reprovação pública do chefe. Na mesma ocasião, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse que o colapso do sistema aéreo era resultado do trabalho que o governo vem fazendo em prol do desenvolvimento do país. "É a prosperidade, né?", opinou o ministro. Como no caso de Marta Suplicy, não se ouviu um único pio dentro do governo para condenar a frase de Mantega. Nada mais natural, pois essa é, exatamente, a atitude real do governo diante dos dez meses de desastre contínuo que aflige os aeroportos brasileiros. A última prova disso, a mais brutal de todas, está na imagem do pensador-chefe do Palácio do Planalto, Marco Aurélio Garcia, festejando com gestos obscenos a notícia de que o avião da TAM que caiu na semana passada ao aterrissar no aeroporto de Congonhas tinha problemas mecânicos. Danem-se os 200 mortos: a única coisa que interessa ao governo é a "vitória sobre a mídia".
Não foi vitória nenhuma, é claro, pois uma falha técnica não muda em absolutamente nada o fato de que o transporte aéreo brasileiro vive hoje o pior momento de toda a sua história; a mídia, ao registrar isso, não está num bate-boca com o governo, e sim expondo realidades indiscutíveis. Mas e daí? Para Garcia e o governo a hora é de comemoração. A verdade é que o acidente de Congonhas veio mostrar de forma particularmente cruel o preço que os brasileiros estão pagando pela postura de um governo que abandonou ao caos a infra-estrutura do país. Fez isso, desde o início, ao entregar a pessoas desprovidas de qualquer capacidade técnica cargos públicos que obviamente exigem competência específica -- como é o caso, entre dezenas de outros, da Infraero. Desde o começo, também, deixou claro que a criação e a manutenção de equipamentos vitais para o funcionamento do país não poderiam contar com recursos do governo nem ser transferidos para a iniciativa privada. O governo sustenta mais de 22 000 pessoas em cargos de confiança, criou um número recorde de ministérios e aumenta sem parar a despesa pública, mas nada disso gerou horas a mais de trabalho efetivo na administração, nem qualquer obra que realmente preste.
A tragédia de Congonhas, somada ao acidente que abriu a crise do sistema aéreo, em setembro de 2006 -- um avião da Gol se chocou no ar com um jato executivo no meio da Amazônia, deixando 154 mortos --, compõe o retrato mais perverso dessa crônica de descaso. O total de vítimas fatais já passa de 350 e, entre um horror e outro, centenas de milhares de passageiros vêm sendo expostos a atrasos colossais nos vôos e sofrimento nos aeroportos. Houve situações de motim e greve entre os controladores aéreos. O presidente da República, diversas vezes, prometeu soluções "definitivas"; chegou mesmo a exigir dos responsáveis, "em 24 horas", medidas para resolver a crise. Foi solenemente ignorado. Em dez meses de descalabro, o governo conseguiu o prodígio de não demitir um único funcionário ligado ao problema. Há dez meses, também, Lula buscava uma "saída honrosa" para o afastamento do ministro da Defesa, a autoridade máxima na área; até a tragédia de Congonhas não tinha achado. O governo, que não teve o menor problema para aumentar em quase 5 000 o número de empregos públicos entregues a amigos, não consegue encontrar dinheiro para contratar os 800 controladores de vôo que estão faltando nas torres. Os aviões voam com freios "pinados". Os equipamentos de rádio têm "áreas de silêncio". Os radares têm "zonas cegas".
Durante toda a crise os brasileiros continuaram a pagar a terceira taxa de embarque mais cara do mundo; só em 2005, deixaram 950 milhões de reais nos cofres da Infraero. Em troca disso, e de todos os demais impostos que pagam, têm tido direito à situação resumida acima, ao deboche dos ministros e, por fim, à quase aberta hostilidade do governo -- percebida nas repetidas declarações de que a crise aérea só afeta a "classe média". Ou, então, na discreta alegria com que autoridades variadas anunciam que "só 8% da população", segundo os institutos de pesquisa, considera-se atingida pelo problema.
Garcia tem mesmo o que comemorar.
Curso de mestrado
O presidente Lula revelou dias atrás que um de seus projetos para o futuro é ganhar dinheiro no circuito de conferências, para as quais espera, inclusive, a presença de gente que hoje fala mal dele. "Vão me convidar para fazer palestras e vão me pagar", previu o presidente. Talvez dê certo. Se não chegar ao fim de seu segundo mandato com a imagem aos pedaços, e se contar com uma estrutura profissional competente para apoiá-lo na atividade de conferencista, Lula tem tudo para tornar-se um astro no mercado mundial de palestras. Pode, na verdade, ficar um homem rico com isso. Talvez não chegue a ganhar, como o ex-presidente Bill Clinton, 200 000 dólares por aparição, mas mixaria com certeza não vai ser. Caso receba um quarto do cachê de Clinton, ou 50 000 dólares, Lula vai faturar em 1 hora de conversa quase o que ganha em um ano inteiro como presidente da República, considerando-se seu salário de 8 885 reais por mês, o equivalente hoje a 4 700 dólares. Com uma palestra por mês, em menos de dois anos ele terá colocado um belo milhão de dólares no bolso -- o que o levará para acima dos 99,85% restantes da população mundial em termos de patrimônio líquido. Nada mal.
Ainda falta muito tempo para chegar lá, é claro; Lula tem três anos e meio de governo pela frente, e nessa caminhada podem acontecer mais coisas do que supõe a nossa vã filosofia de hoje. O que está acima das incertezas do futuro é a variedade de lições que desde já ele teria a oferecer. O presidente poderia ensinar, por exemplo, que a melhor coisa que um político de "esquerda" pode fazer para a sua própria estabilidade quando chega ao governo é não balançar o coreto das realidades econômicas. Ao longo da campanha está livre para dizer, do palanque, que prefere "pagar salário a trabalhador do que pagar juro a banqueiro" ou que o combate à inflação é um "estelionato". Não importa. O que vale mesmo, quando começa o jogo de verdade, é seguir o manual de regras da "direita", colocar um bom Henrique Meirelles no Banco Central e deixar os economistas de seu partido falando sozinhos.
O tema de maior sucesso nas palestras do presidente, porém, seria a sua habilidade inédita para eliminar a oposição -- sem precisar, para isso, mexer numa única lei ou fazer qualquer trapaça antidemocrática no estilo das que o companheiro Hugo Chávez pratica na Venezuela. A platéia receberia, aí, um verdadeiro curso de mestrado. Lula conseguiu desmanchar a oposição porque teve a capacidade, em primeiro lugar, de assumir ele próprio a imagem de oposicionista número 1 do país. Fazer oposição fora do governo qualquer um faz; continuar na oposição depois de receber a faixa de presidente é coisa que só Lula, até hoje, conseguiu. Seja qual for o problema que apareça em seu governo, a culpa não é dele nunca: é das elites, da mídia, do preconceito, de traidores não identificados, "dos" que não aceitam seu trabalho em favor dos pobres, e por aí afora. Até agora tem funcionado: basta fazer discurso com cara de bravo que a maioria da população, como garantem os institutos de pesquisa, acredita que é ele, Lula, quem mais está lutando para consertar o Brasil. Em segundo lugar, o presidente deixou de ter oposição porque trocou de lado, de programa e de compromissos. Anos atrás Lula disse que o Congresso brasileiro tinha "300 picaretas". Estava certo -- errou só na conta, pois o número verdadeiro acabou se revelando bem maior. Mas desde que chegou à Presidência não fez nada para estabelecer diferenças de conduta entre o seu governo e o bando de escroques que havia denunciado. Em vez disso, casou de papel passado com todos eles assim que tomou posse, dentro do princípio segundo o qual o jeito mais esperto de garantir uma maioria é juntar-se à maioria que existe. Em terceiro lugar, enfim, Lula convenceu o principal partido que havia sobrado na oposição, o PSDB, a deixá-lo em paz -- com os índices de popularidade do presidente nas alturas, nada pior para o futuro político dos adversários do que brigar com ele.
"I used to be on an endless run.
Believe in miracles 'cause I'm one.
I have been blessed with the power to survive.
After all these years I'm still alive."
Joey Ramone, em uma das minhas músicas favoritas ("I Believe in Miracles")