Há gente achando que a universidade é o morro da esquerda: polícia não entra. E as teses de uma certa professora
Cheio de espanto, leio no G1 o seguinte: “Professores da Universidade de São Paulo (USP) condenam a intervenção da Polícia Militar nas negociações entre a reitora Suely Vilela e os estudantes que ocupam o prédio da reitoria desde o dia 3 de maio. ‘A hora que a universidade precisar da força de repressão é porque perdeu seu lugar de crítica, de negociação, de aceitação das idéias, de desenvolvimento de conhecimento e da ciência. Isso mata a universidade’, afirma a professora Zilda Iokoi, do Laboratório de Estudos da Intolerância (LEI) da USP."
Em primeiro lugar, lamento a generalização do lead da notinha. Parece que todos os professores da USP compartilham da tese da professora Zilda, o que não é fato. Tudo foi tentado. Nada foi conseguido. Agora, há uma ordem judicial.
A professora Zilda usa mal as palavras. Eu me lembro dela. É aquela que escreve livros sem se subordinar a detalhes como nomes, datas, lugares ou mesmo fatos. Pelo visto, inventa o que não sabe sem nem mesmo se dar ao trabalho de pesquisar. E, agora, vê-se, também não se subordina à língua portuguesa. “Repressão” é como chamávamos a ação da polícia e das Forças Armadas contra os que faziam protestos contra a ditadura. No estado democrático de direito, a polícia existe para reprimir os que se opõem aos direitos e à democracia. Como é o caso. Se acontecer um estupro dentro da USP — e já aconteceu —, a professora Zilda manda chamar a polícia ou resolve tudo no ambiente da própria comunidade?
Há gente achando que a universidade está para os sectários de esquerda como os morros estão para o narcotráfico: polícia não entra. Para quem quer saber um pouco mais sobre o trabalho intelectual da professora Zilda, segue uma coluna de Elio Gaspari. De lá pra cá, ela pode até ter melhorado seus métodos de pesquisa, mas não melhorou os dons do pensamento.
A sinfonia dos educatecas doidos
Em 1997, a editora Loyola publicou um livro intitulado "O Brasil atual e a mundialização". Foi coordenado pela professora Zilda Márcia Grícoli Iokoi, atual chefe do Departamento de História da Universidade de São Paulo. À página 16, ela se assina "autora". Com 144 páginas ilustradas e linguagem simples, era o quinto de uma coleção paradidática. Teve uma tiragem de cerca de 3.000 exemplares e foi reimpresso no ano passado. Oferecido pela Secretaria de Educação de São Paulo à sua rede de ensino, foi mandado a mil escolas.
Deixando-se de lado qualquer crítica de interpretação, e limitando-se a lista dos erros que o envenenam a apenas 14 (10% do número de páginas), resulta o seguinte:
1) Brasília foi uma obra do "arquiteto Oscar Niemeyer, reconhecido mundialmente por sua escola arquitetônica, e [do" calculista Lúcio Costa". Lúcio Costa não era calculista, mas arquiteto. É dele o traçado do Plano Piloto da cidade.
2) O Partido Comunista foi colocado na ilegalidade em 1947, depois que Carlos Lacerda publicou na Tribuna da Imprensa uma entrevista de Luiz Carlos Prestes na qual ele dizia que numa guerra contra a URSS "ficaria ao lado do governo popular". Impossível. A Tribuna da Imprensa foi fundada em dezembro de 1949. O episódio deu-se num debate com Juracy Magalhães.
3) João Gilberto nasceu em Juazeiro, terra do Padre Cícero. Ambos fizeram milagres, mas João Gilberto nasceu em Juazeiro da Bahia e o Padim em Juazeiro do Norte, no Ceará.
4) Nos anos 40 houve na China "um processo revolucionário" dirigido por "Ho Chi Minh, o poeta, e Mao Tsé-tung, o estrategista". Ho era vietnamita e não dirigiu coisa alguma na China.
5) A bossa nova teve o apoio de um "eminente diplomata brasileiro", o "embaixador" Vinicius de Moraes. Nem Vinicius foi eminente por diplomata nem era embaixador.
6) O general Eurico Gaspar Dutra é dado como "ex-participante da FEB". Como ministro da Guerra, Dutra, apenas visitou a Força Expedicionária Brasileira na Itália.
7) "Olímpio Mourão Filho, comandante do I Exército, com sede em Minas Gerais", mobilizou suas tropas em 31 de março de 1964, para derrubar João Goulart. A sede do I Exército, comando de general de quatro estrelas, ficava no Rio. Mourão era um general de três estrelas e comandava a 4ª Região Militar.
8) João Goulart defendia a nacionalização das empresas de comunicações "para evitar a espionagem interna que a International Telegraph and Telephone executara a mando da CIA e do SNI". O SNI foi criado depois da queda de Jango.
9) "A Revolução Cubana tinha na base uma pequena guerrilha camponesa que deu cobertura aos jovens que desembarcaram em Moncada". Não havia guerrilha na Sierra Maestra, para onde foram os guerrilheiros de Fidel Castro em 1956. Moncada é o nome do quartel que ele atacou em 1953, acabando preso.
10) "O fim da Segunda Guerra criou os impasses para as articulações dos países às novas perspectivas da política de blocos, especialmente devido às polaridades determinadas após o fim do grande confronto vivido por Molotov e Kamenev e as lideranças dos países capitalistas". Seja qual for o confronto vivido por Kamenev, o marechal Stalin passou-o nas armas em em 1936. Nove anos antes do fim da guerra.
11) O senador McCarthy, responsável pela perseguição aos comunistas nos Estados Unidos no início dos anos 50, é chamado de McArthur. O presidente que segurou um pedaço do macartismo aparece com o nome de "Eisenhauer". Chamava-se Eisenhower.
12) Celso Furtado é referido como "ministro do Planejamento" de Juscelino Kubitschek. Não havia ministério do Planejamento no governo JK nem Furtado foi seu ministro.
13) A fenda aberta pela guerra fria na política brasileira "só terminaria com a anistia, em 1988". O general João Batista Figueiredo assinou a anistia em 1979.
14) Numa digressão sobre as oligarquias do Brasil atual, informa: "Em Santa Catarina são dois os grupos de poder: os Konder e os Bornhausen". Não há divergências na família de Jorge Konder Bornhausen. Seus adversários estavam na família Ramos.
Finalmente, uma trapaça do tempo. O livro, reimpresso no ano passado, informa que, Antonio Carlos Magalhães "controla o PFL e o próprio presidente da República".
Livros com erros são coisa da vida. Ninguém é obrigado a comprá-los, a lê-los ou a estudá-los. No caso, a história foi outra. O trabalho fez carreira na burocracia pedagógica paulista. Em 1997, foi incluído por uma comissão de professores na bibliografia que os candidatos a 5.000 vagas de professor de história da rede pública deveriam estudar.
Posteriormente, talvez por ter entrado na bibliografia do concurso, foi selecionado por outra comissão de professores e posto na lista de obras paradidáticas que as escolas poderiam solicitar à Secretaria de Educação. Segundo a secretaria, a Viúva comprou da Edições Loyola 2.383 exemplares.
Lisamente, a professora Zilda Iokoi reconhece os erros e revela que, em quatro anos, jamais recebeu uma só restrição ao que publicou. Segundo ela, alguns deles, percebidos, foram comunicados à editora. A professora e a editora, num gesto talvez inevitável, porém certamente racional, informam que o livro terá sua circulação suspensa. A Secretaria de Educação avisa que ele será retirado das bibliotecas das escolas. Termina bem o que acaba bem?
Nem pensar. O fato de um livro com tamanha quantidade de bobagens ter entrado numa bibliografia de concurso e de ter sido mandado a mil escolas para instruir estudantes mostra que a história brasileira foi tratada por meia dúzia de educatecas sem o respeito que se deve a uma xepa de feira. Na xepa confere-se a compra.
Queiram os deuses que, irresponsavelmente, os professores que o indicaram (bem como os que o usaram em suas aulas) não se tenham dado ao trabalho de lê-lo. Nesse caso, são apenas maus servidores. Se o leram e não notaram nada de estranho, não têm vestígio de competência para ensinar história, muito menos para julgar os conhecimentos da garotada.
Tio Rei & Elio Gaspari