OS SIMPSONS E A FILOSOFIA

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Postby mends » 03 May 2004, 09:28

ainda não li, meu irmão comprou, vou dar uma olhada. Mas enquanto isso, segue uma matéria da Carta Capital detonando o livrinho...


Nova coletânea ilustra as possibilidades e as limitações de tratar produtos da cultura de massas como temas filosóficos.

Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

A coletânea Os Simpsons e a Filosofia não é a primeira tentativa de unir erudição e indústria cultural. Na mesma série Popular Culture and Philosophy, na qual foi originalmente editada, há volumes dedicados a Buffy, Senhor dos Anéis e Matrix.

Por caminhos um pouco diferentes, há também A Ciência de... Star Wars (Market Books, R$ 35), Arquivo X (Mercuryo, R$ 28), Harry Potter (Campus, R$ 50) e o Tao do Pooh (Triom, R$ 11,60), para citar apenas títulos traduzidos no Brasil. Nos EUA, escolas dominicais dispõem de The Gospel Reloaded e de O Evangelho Segundo... Peanuts, Tolkien, Harry Potter, Dr. Seuss (criador de Grinch e O Gato de Chapéu) e – é claro – os Simpsons.

Tais obras são introduções eficazes à filosofia, à ciência ou à teologia? Ou limitam-se a adular o gosto dos fãs para explorá-los? Certos produtos da cultura de massas oferecem tão pouco à abordagem proposta que a conclusão é pessimista: na melhor das hipóteses, aproveita-se uma mania para contrabandear noções alheias a ela – procedimento pouco didático, para dizer o mínimo.

Os melhores momentos de A Física de Jornada nas Estrelas (Makron, R$ 32), por exemplo, estão no último capítulo, que lista as gafes científicas da série. Até os fãs mais “cdf” têm de deixar de lado a ciência real para se divertir com o programa.
Mas há como usar o mesmo seriado de forma mais feliz. Seus melhores episódios abordam dilemas morais e políticos – exóticos, mas tratados com certa seriedade. E suficientemente variados em suas formulações e resoluções para permitir a Judith Barad oferecer uma razoável introdução à filosofia ética, de Platão ao pós-modernismo, em The Ethics of Star Trek (Perennial, R$ 62 na Livraria Cultura).

Matrix – Bem-vindo ao Deserto do Real (Madras, R$ 30) também não é forçado: o filme realmente cita uma tradição filosófica que inclui a caverna de Platão e o demônio de Descartes. Também nesse caso podem-se explorar, com honestidade, reflexões que ocorrem naturalmente ao espectador inteligente.


Hã?
A aristotélica, o heideggeriano, a zen, a kantiana – e Homer, dizem-nos alguns dos autores


No caso dos Simpsons, o resultado é mais ambíguo. A alguns autores parece ter faltado habilidade ou coragem para ousar algo pertinente ou recusar o convite (e os pontos que tal publicação lhes proporciona nas avaliações quantitativas hoje tão prestigiadas pela academia). Cometeram breves ensaios sobre seu tema filosófico favorito, nos quais os Simpsons entram como Pilatos no Credo. Parecem trabalhos escolares convencionais e mediocremente escritos, salvo pelo humor simpsoniano – voluntário ou não – de suas conclusões.

O Que Bart Chama de Pensamento, de Kelly Jolley, faz uma apresentação fast-food da fenomenologia de Heidegger e garante: Bart Simpson é um pensador heideggeriano. Face a face com as coisas em tudo o que pensa e faz, não recorre a idéias intermediárias entre ele e o mundo. Pobre Jolley, o fantasma de Martin há de puxar-lhe o pé para o resto da vida...

Assim Falou Bart, de Mark Conard – um dos organizadores da coletânea –, discute a visão nietzschiana da moral para concluir: não, o moleque não é um Übermensch, é um mero niilista. Do fundo da tumba de Friedrich, dá para ouvir o suspiro de alívio e gratidão.

Outras análises discutem a ética de Marge e Homer do ponto de vista aristotélico ou kantiano. São menos pretensiosas, mas não soam menos tolas. Até os espectadores de Comichão e Coçadinha sabem que as animações cômicas norte-americanas são proibidas pelas convenções do gênero de tomar decisões conseqüentes e existirem eticamente. É vedado ter mais coerência do que a compatível com a função de suporte de piadas ou tentar mudanças na vida e hábitos que não sejam revertidos até o final do episódio: a série precisa continuar.

Mais natural e proveitoso é questioná-la como ideologia e indústria cultural – aprofundar o que a própria série faz continuamente, com uma auto-ironia acessível a todos, exceto certos filósofos de Springfield.

Aeon Skoble, outro organizador, vem razoavelmente a propósito ao relacionar a ambivalência quanto à menina Lisa com o antiintelectualismo ascendente nos EUA. A mente mais sensata de Springfield é mostrada como chata, ridícula e arrogante se contraria essa multidão que zomba de intelectuais e especialistas que dela discordem.

“Ora, o que eles sabem?” (Ei, é Homer quem fala? Ou é George W. Bush?)

Carl Matheson vê a hiperironia e a orgia de citações que distinguem esse programa de seus antecessores como sintomas de crise da crença na autoridade e no progresso. Nada promove: toda posição apresentada é prontamente ironizada. A série zomba até do próprio cinismo ao prestar regularmente sua homenagem a valores familiares perfeitamente água-com-açúcar – em uma espécie de versão em negativo do “alívio cômico” dos dramas hollywoodianos.

A crítica marxista de James Wallace põe em evidência os mecanismos com que a série absorve toda oposição e coopta toda crítica, satirizando opressor e oprimido, vítima e algoz, com o mesmo escárnio. Os ineptos sindicalistas Carl e Lenny (“homenagem” a Karl Marx e Lenin) não valem mais que Monty Burns, o capitalista superexplorador e impiedoso. Os Simpsons, conclui, são outro ópio do povo.

Já Paul Cantor, na outra ponta do espectro político, reclama do retrato “gratuitamente” vicioso de Bush pai em Dois Maus Vizinhos e da lerdeza em criticar os escândalos sexuais de Clinton, mas elogia a “política profunda” refletida no retorno à família nuclear e à mãe dedicada e boa dona de casa, que seriados anteriores já haviam dispensado (para não falar de South Park). “Pegue o pior cenário possível – os Simpsons – e veja que mesmo essa família é melhor do que não ter família alguma.”

Cantor vê, na rebeldia de Bart, um arquétipo tão norte-americano quanto a torta de maçã (na tradição de Tom Sawyer e Dênis, o Pimentinha). Elogia até a sátira à religião, pois, ao tratá-la como qualquer outra parte da vida “normal” de Springfield, reconhece seu papel significativo nos EUA, enquanto a maioria das produções de Hollywood a ignora ou mistifica (claro, acrescentaríamos, é o que se costuma fazer com os concorrentes).


Os normais.
O primeiro casal a ousar partilhar uma cama


A série criada por Matt Groening em 1989, no fundo, é conservadora. Até porque o alcance e a variação de atitudes à disposição de produtos da indústria cultural são bem limitados. Mesmo mensagens suavemente críticas só podem ser introduzidas de forma sub-reptícia e irônica. É preciso muita cautela antes de dizer ao imperador que ele está nu.
Como lembram Dale e Janes Snow, o primeiro casal a compartilhar uma cama na tevê norte-americana foram Herman e Lily Monstro, em 1964. Podemos acrescentar que o primeiro beijo inter-racial (simulado) ocorreu em 1968, em Jornada nas Estrelas – e para isso os corpos do Capitão Kirk e da Tenente Uhura precisaram cair sob o controle de extraterrestres.

Os Simpsons são até mais conformistas, quanto à vida privada e aos estereótipos aplicados aos estrangeiros, que a média do mundo televisivo do qual surgiram (como, aliás, outros fáceis humorismos pseudo-anárquicos, veja-se Casseta e Planeta).

O casal Snow faz notar que 80% dos papéis são masculinos – ante 65% no resto da mídia – e os das mulheres dividem-se entre boas donas de casa e megeras. O único gay no elenco permanente, diga-se ainda, parece ser Smithers, o puxa-saco de Burns.

Os autores desse livro não tocam no assunto, mas não é preciso lembrar aos brasileiros como o seriado trata o resto do mundo. Depois do famoso episódio em que os Simpsons foram atacados por macacos no Rio de Janeiro, soube-se no episódio Sr. Spitz Vai a Washington que o palhaço Krusty tem problemas com a imigração porque Teeny, seu macaco, é brasileiro – “seu tio era o macaco-chefe no Departamento de Turismo”. Em outro episódio, mais recente, Homer diz que gostaria de voltar ao Brasil, mas ouviu que “o problema dos macacos ficou ainda pior”.

Vale lembrar também a caricatura da França (para não falar da Albânia) em Crepes da Ira. Claro que não se debocha menos dos EUA– nesse episódio, Adil Hoxha, o pequeno comunista albanês ao qual Homer ingenuamente confiou os segredos da usina nuclear na qual trabalha, é desmascarado, capturado – e trocado por outro garoto espião, norte-americano, que aparentemente fazia o mesmo na Albânia.

Os vacilos da classe operária de Springfield também retratam, aos olhos do espectador crítico, a acomodação e a cumplicidade dos trabalhadores reais com os destinos que os derrotam. E quando se ouviria na tevê que “talvez Adil tenha razão ao dizer que a máquina do capitalismo é lubrificada com o sangue dos trabalhadores” se isso não viesse de Homer? Quando os filósofos não se dispõem a beber cicuta por suas convicções, só resta o privilégio do bobo da corte: o de impunemente despir os véus da hipocrisia.

Se há alguma coerência ao longo de toda a série, está em sua disposição de desvendar impiedosamente todas as imposturas da vida em sociedade, enquanto é compreensiva com a espontaneidade grosseira de seus anti-heróis e preserva piedosamente seu núcleo sagrado e intocável: o que Matheson chamou de amor bruto, o afeto quase animal pela vida, por si mesmos e pela família que está no fundo (bem, bem no fundo) até dos corações de Homer e Bart e parece redimi-los de tudo.

Nesse ponto, a habitual desfaçatez da série dá lugar a algo que, diante das realidades familiares de muitos dos espectadores, é quase um utopismo ingênuo. Como dizia a publicidade da série quando surgiu no Brasil: “... Homer está gordo. Você está gordo. Homer está ficando careca. Você está ficando careca. Homer tem uma esposa que o ama”. Ponto final.

É surpreendente que nenhum dos ensaístas desse livro cite Rousseau, cujo pré-romantismo continua a guiar a cultura de massas norte-americana. Nem Diógenes, o pai do cinismo. Nem os teóricos da indústria cultural, com a honrosa exceção do texto de David Arnold, que faz Roland Barthes assistir ao desenho (mas seriam também interessantes os pontos de vista de Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, Edgar Morin...).
Seria mais honesto e educativo do que insistir em inadequados enfoques éticos (ou simplesmente moralistas) ou procurar em Springfield quem jamais colocou lá os pés – como Aristóteles, Kant, Nietzsche ou Heidegger. Para quem está de fato interessado nos grandes filósofos e procura um caminho suave, mais vale ler O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder (Cia. das Letras, R$ 43) ou Convite à Filosofia, de Marilena Chauí (Ática, R$ 59).
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